Haviam passado quatro semanas desde a visita à Mãe Árvore. O Jovem Dragão tivera tempo de pensar na informação que recebeu e de sentir o seu significado. O Grande Panda ajudara-o a compreender melhor as palavras ditas e o caminho que lhe que fora apresentado. O brilho que o seu amigo sentia sobre ele, era afinal a bênção da Estrela Régia. Um elemento mitológico, presente desde tempos antigos nas histórias contadas, e que era representada como um anel circular com oito raios de chamas azuis. Era o símbolo do coração do próprio planeta, o Sol central que brilha no seu interior e que nutre a terra.
Para si, a ideia de ser rei ainda remetia para a imagem de uma figura com estatuto acima de todos, a qual decidia o rumo da comunidade. Ainda era cedo para decidir sobre esse destino. Mas sentia curiosidade por aprender com a sabedoria dos cinco Mestres Formidáveis que a Mãe Árvore lhe aconselhara a procurar.
Os Mestres Formidáveis eram seres escolhidos em concelhos mundiais de Anciãos para serem emissários dos cinco aspetos da criação do espírito do planeta. Ou assim o seu amigo Panda lhe contara. Por outras palavras, cada um deles é um também um Guardião, mas da sabedoria de um dos cinco elementos da criação: a Terra, a Água, o Ar, o Fogo e o Éter. Só havia uma dificuldade: saber onde os encontrar. Pois estes não são Guardiães enraizados em nenhuma terra, mas sim itinerantes, transportam a sua sabedoria e partilham-na pelo mundo.
Contudo, contava com essa tarefa em parte facilitada, pois entre os Guardiães havia algo invisível que os mantinha ligados e que possibilitava a comunicação entre eles. E naquela manhã, o seu amigo Guardião do Equilíbrio tinha entrado na sua casa, cheio de entusiasmo, para lhe contar a boa nova.
– Temos audiência marcada com o primeiro Mestre Formidável! A Mestra Elefanta! É a guardiã da sabedoria do Elemento Terra e vai esperar por nós a norte, na Floresta Húmida!
A alegria do Grande Panda em dar início a esta viagem transparecia na sua voz, de tal modo que até mudou o corpo para a forma de águia e rematou em riso:
– Estou pronto quando estiveres!
O Jovem Dragão já vinha sendo preparado para esta viagem e não precisou de mais tempo para aceitar o convite. Preparou uma sacola com comida e saíram os dois em voo, ao encontro marcado.
A Floresta Húmida ainda ficava um pouco longe. Voaram durante três dias e descansaram durante as noites. No quarto dia decidiram fazer o percurso restante a pé, comendo bagas pelo caminho e ligando-se com os pés à terra. Perto da floresta, o Grande Panda sondou a presença da Mestra Elefanta e seguiu com o Jovem Dragão na direção onde a sentiu.
Descobriram a Mestra sentada a meditar, com as costas apoiadas num rochedo maior que ela. Um pequeno ratinho pousava uma fruta, ao seu lado, mas assim que viu aproximar os dois grandes estranhos, esgueirou-se para detrás da pedra, escondendo-se. Os dois amigos aproximaram-se e, em respeito, mantiveram o silêncio. Sentaram-se, concedendo à Mestra o seu tempo e a iniciativa da palavra. Ao sentir os seus convidados, a Mestra Elefanta abriu suavemente os seus olhos e lentamente acenou-lhes em saudação oferecendo-lhes um sorriso generoso. Com a tromba, pegou na fruta que o ratinho lhe oferecera. Levou-a à boca e, numa dentada, degustou o seu sabor.
– Guardião do Equilíbrio, reconheço o teu coração firme – falou a Mestra olhando para o Grande Panda – Quando entraste em contacto comigo, consegui sentir bem o que ia dentro de ti. Por isso foi fácil consentir com o pedido para este encontro – fez uma pausa e, tocando com a tromba no peito, acrescentou: – Lembro-me de todos os corações em que toquei.
A Mestra estava a par do propósito da vinda dos visitantes pelo que não se alongou no tempo com introduções. Olhou por fim para o Jovem Dragão e disse:
– Então temos aqui um aspirante a Rei. Abençoado pela Estrela Régia. E deduzo que me queiras ouvir falar sobre o meu conhecimento, para te ajudar nessa decisão. Será isso?
O Jovem Dragão não conseguiu distinguir o tom com que a Mestra se dirigiu a ele. Seria ironia ou apenas um tom sério? Sem saber o que dizer, apenas sorriu.
Por esta altura o ratinho tinha perdido o medo e ficou ao lado da Mestra a sentir o cheiro dos visitantes.
A Mestra Elefanta olhou calmamente nos seus olhos e o Jovem Dragão sentiu algo dentro de si. Sentiu-se observado por dentro, como se o seu valor estivesse a ser sondado. Não soube o que a Mestra viu, pois o seu semblante não se alterou.
– Jovem Dragão – disse a Mestra – proponho o seguinte: acompanha-me durante sete dias na floresta e irei ensinar-te a sentir o pulsar do coração de todos os seres que vivem em nosso redor. Parece-te algo digno de ser a primeira lição de um Rei?
Foi apanhado de surpresa pela incisão da proposta. Não sabia o que esperava daquele encontro, mas imaginara algo mais breve. No entanto, o seu lado aventureiro entusiasmou-se e meio tímido aceitou a proposta. O seu amigo Panda assegurou-lhe que podia ir com a Mestra; ele ficaria bem, enquanto esperava a sua volta. Iria aproveitar para descansar e meditar num lago próximo. Comida não faltava na floresta.
Assim se iniciou o primeiro ensinamento. Pelos trilhos da floresta, o Jovem Dragão acompanhou a Mestra. Queria aprender e por isso observava e absorvia cada detalhe que via. A Mestra Elefanta não falava, mas, ainda assim, parecia comunicar com todos os seres em volta dela. No primeiro dia, o Jovem Dragão procurou várias vezes o olhar da Mestra, mas reparou que ela não lhe correspondia. Então mudou o seu foco para observar e sentir mais ainda a natureza, sem se preocupar tanto com o que a Mestra fazia. E percebeu que era isso que ela pretendia mostrar-lhe.
Durante três dias permaneceram em silêncio de palavras. Os sons da natureza era tudo o que os acompanhava. Fizeram pausas para comer, meditar e dormir. Para o Jovem Dragão, o tempo restante parecia como se estivesse numa escola. Observou como o vento se movia pelas árvores e como os seus ramos balançavam seguindo uma dança própria. Observou os movimentos das pequenas criaturas e viu como de início o evitavam, passando depois a não se importar com a sua presença. Começava a sentir que o mundo em redor também o sentia e que respondia aos seus pensamentos. Havia muita informação a circular pela natureza. Apercebeu-se que se usasse a mente para a ler, apenas conseguiria ter contacto com uma parte dela. A pouco e pouco, deixou de observar para compreender e permitiu-se a estar presente somente para sentir. A comunicação mais rica era aquela que conseguia sentir com a olhar do coração e assim se deixou aprender. Tinha compreendido a primeira lição.
No quarto dia, a Mestra indicou-lhe um percurso para percorrer sozinho. Nesse dia, embrenhou-se pela zona mais densa da Floresta Húmida que fazia jus ao seu nome. Os troncos e ramos das árvores estavam cobertos de musgos e líquenes e o ar tinha um cheiro característico a terra húmida. Estava quase literalmente a tomar um banho de floresta. Conseguia ouvir sons de outros animais, mas não via mais ninguém além das plantas. A calmaria e a solitude daquele lugar proporcionavam introspeção.
A Mestra não apareceu ao pôr do sol e, sem se importar, aproveitou para refletir sobre o que ia no seu coração. Estar ali no meio das árvores era uma imagem muito diferente do que imaginou sobre o que seria receber a sabedoria dos elementos. E este primeiro ensinamento vinha do elemento Terra. Faltava visitar mais quatro Mestres e no fim teria de saber se aceitaria ser Rei. Que sabia ele sobre cuidar da terra e de uma comunidade? Podia pedir ao Grande Panda para ser seu conselheiro, mas ainda assim, será que era isso que estava a ser pedido dele? Esse desconhecimento sobrecarregava-o, e a viagem para compreender essa questão estava só a começar. Respirou fundo e deixou-se inundar pela humidade do ar. Nessa noite adormeceu enquanto meditava.
Na manhã seguinte voltou a ver a mestra. Avistou-a ao longe, a comunicar com uma mãe javali, junto de seis pequenos filhotes brincalhões. Ao o verem a aproximar-se, os filhotes espantaram-se e animaram-se. Pouco depois, a mãe javali chamou por eles e encaminhou-os atrás de si para outro lugar, sem prestar atenção ao Jovem Dragão. A Mestra recebeu-o com um sorriso e indicou-lhe para seguirem juntos e continuarem em silêncio. No seu coração, o Jovem Dragão sentiu uma diferença. Sentia a energia maternal que fluía do coração da Mestra. Ela sentiu a sua surpresa e fixou os olhos dele, sorrindo. O Jovem Dragão reconheceu que esta era a forma de comunicar que ela pretendia que ele aprendesse desde o início e, em confirmação, a Mestra fez-lhe uma vénia com a cabeça.
Passaram o quinto e o sexto dia mais próximos. E o ratinho que acompanhava a mestra, passou a sentir-se confiante para agarrar-se ao seu pelo e subir também para as suas costas. Nesses dias, a Mestra ensinou-o como expandir a sua habilidade para sentir o pulsar de tudo o que o rodeava. Não só o pulsar do coração que batia no peito das criaturas, como o pulsar da seiva que fluía no corpo das plantas.
Na manhã do sétimo dia, mantendo ainda o silêncio, a Mestra Elefanta deu-lhe as últimas instruções. Iria ausentar-se da floresta e o Jovem Dragão deveria permanecer em jejum e em meditação até ela voltar ao pôr do Sol.
E assim fez, o Jovem Dragão. Sentou-se à sombra de um teixo farfalhudo e ali permaneceu enquanto o Sol iluminou o céu. Com os olhos fechados sentiu-se a si próprio, ora naquele lugar, ora fora dele. Mesmo de olhos fechados, o mundo à sua volta entrava nele através dos outros sentidos. Mas havia algo de especial na visão que, ao ser desligada, ativava na mente um estado de sobreposição entre a existência e a não existência do ser. Um sentimento de neutralidade tomava lugar e soava ao toque macio do vento ou à subtileza do movimento da água. Era estar no mundo, mas sem impor a sua vontade. Não havia realmente necessidade de o fazer, pois para tudo havia um encaixe perfeito. A natureza acomodava toda a vida que fazia parte de si em sistemas autossustentados. Era simples. Bastara reconhecer a circulação da informação natural e permitir a comunicação acontecer pelo coração.
Lembrou-se das palavras da Mestra no primeiro encontro e foi então que teve uma revelação. O pulsar do coração de todos os seres, aquilo que os movia na interação com o mundo em seu redor, formava uma sinfonia musical sobre a qual a natureza dançava. Em si mesmo, era o grande pulsar do coração do planeta.
O Jovem Dragão sentiu-se inundado por um sentimento de reverência por todo o planeta e por si mesmo como parte dele. Sorriu em alegria e abriu os olhos para partilhar o que sentia com o mundo. Viu que o Sol estava quase a pôr-se e, com espanto, apercebeu-se que não sentira o tempo a passar. Ao seu lado viu um montinho de frutas que alguém lhe deixou e, entre as frutas, dois pequeninos olhos negros olhavam de volta para ele. Era o ratinho da Mestra Elefanta. Sorriu-lhe porque sentia vontade de partilhar a sua alegria e agradeceu-lhe pelas frutas. No entanto, esperaria pela volta da Mestra para as provar.
O vermelho do pôr do sol já tinha dado lugar ao violeta do anoitecer quando a Mestra Elefanta voltou. Com ela, trazia a companhia do Grande Panda que sorriu de orelha a orelha ao ver o amigo, que quebrou o silêncio para o receber e abraçar. Sentaram-se para em comunhão degustarem as frutas, que com muito orgulho o pequeno ratinho tinha trazido.
O Jovem Dragão, usando a sua voz, partilhou a experiência e as revelações que sentiu. Era estranho ao fim daqueles dias comunicar novamente com palavras. Tinha-se habituado a comunicar com o coração, mas também entendeu que a comunicação podia acontecer de mais de uma forma em simultâneo. O seu amigo ouviu-o e partilhou do seu entusiasmo, contando também como aproveitara o seu tempo de retiro na floresta. Por fim, a Mestra Elefanta concluiu sobre a experiência daquela semana.
– Jovem Dragão. Foi com o coração cheio que vi o teu progresso. Ainda que me tenhas sentido um pouco dura no início, agi como senti ser melhor para abrires do teu coração à natureza. E a melhor ferramenta foi aprenderes que o ato de percecionar é muito mais importante do que o ato de expressar. Observar o mundo leva a nossa compreensão muito mais além do que é possível quando ocupamos a nossa mente com palavras ditas e ouvidas. Na natureza todos somos estudantes. Ela é a professora de todos e com todos comunica através do pulsar do seu coração. Para o papel que buscas desempenhar, decerto compreendeste que nem esta, nem nenhuma terra precisa de ser governada. Há um sentido de orientação e de dever inerente ao fluxo da vida, e que é necessário reconhecer para confiar e participar dele. Tudo tem um pulsar, um ritmo próprio que se entrelaça nos movimentos do mundo como uma bela tapeçaria. Como Rei, terás de confiar sempre no teu coração e saber mantê-lo ligado ao coração do mundo.
Com aquelas palavras, o Jovem Dragão sentiu-se mais iluminado do que a própria lua cheia que brilhava o céu. Terminaram de comer as frutas e nessa noite descansaram. Na manhã seguinte iniciariam a viagem de regresso a casa e com eles levariam o crescimento daquele retiro e o entusiasmo de encontrar o próximo Mestre.
Esta fábula é complementada com duas ilustrações de James Norbury. A ligação ao seu instagram é um convite a descobrir a sua sabedoria zen.
* imagem do cabeçalho: Jax Shendan / Macy K
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